Transformação digital e comercialização no agronegócio

Ao lado das diversas consequências negativas da pandemia de COVID-19 que assolou e assola o Brasil e mundo, no agronegócio foram observadas algumas externalidades positivas, ou seja, benefícios advindos da situação sui generis de trabalho em home office e da impossibilidade de contato pessoal. 

 

Muitos destes benefícios referem-se à “transformação digital”, assunto que ganhou destaque em decorrência da necessidade de muitos negócios serem feitos de forma remota. Isso fez com que contratos que antes eram emitidos e assinados na forma tradicional (com papel e caneta) fossem gerados e assinados de forma eletrônica, conforme regulado pela Medida Provisória 2.200-2/2001. Ao lado disso tudo, ainda temos o surgimento de aplicativos e de plataformas digitais que prometem revolucionar a forma como a produção agrícola é negociada e, até mesmo, financiada no Brasil, trazendo enormes vantagens para todos.

 

Posto isto, neste artigo eu gostaria de tratar de alguns aspectos jurídicos relacionados à comercialização de commodities realizadas por meios digitais, e que devem ser levados em conta em razão da dinâmica das negociações ocorridas nas cadeias do agronegócio.

 

Em primeiro lugar, os instrumentos gerados e firmados em ambientes digitais para a venda de produtos agropecuários passam a ser chamados de contratos eletrônicos. Seguindo a linha defendida pelo Professor Rodrigo Fernandes Rebouças, o contrato eletrônico não é um novo tipo de contrato, mas indica que a manifestação de vontade das partes para a conclusão do negócio foi realizada através de meios eletrônicos (in Contratos Eletrônicos – Formação e Validade: Aplicações Práticas, 2ª Edição, Almedina, 2018). Não existe uma regulação específica para os contratos do agronegócio pelo fato de terem sido gerados e firmados através da Internet e o direito a ser aplicado é o Direito Privado utilizado para os contratos em geral.

 

Em relação ao tipo de contrato mais extensamente utilizado para a comercialização de produtos agrícolas, que é o contrato de compra e venda, não existe qualquer impedimento para que as partes manifestem sua vontade através dos meios eletrônicos.  Pelo contrário, a lei estabelece que para tais contratos seja aplicada a regra geral do artigo 107 do Código Civil pelo qual “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente o exigir”. Contratos de compra e venda de produtos agropecuários não se enquadram nas exceções previstas em lei pelas quais se exige forma especial ou uma solenidade (como a necessidade de outorga de escritura pública). Logo, em regra, no tocante aos contratos do agronegócio vale o “Princípio da Liberdade de Forma” para as declarações de vontade e a contratação por meio eletrônico é juridicamente possível.

 

Por outro lado, permanecem válidas as disposições legais que tratam da validade, existência e eficácia dos negócios jurídicos em geral e, ainda, as regras específicas dos contratos de compra e venda de bens móveis. Em especial, nenhuma forma de contratação eletrônica relacionada às commodities agrícolas pode dispensar a análise quanto a capacidade das partes para firmar o contrato (artigo 104, inciso I do Código Civil), se os produtos objeto da comercialização são lícitos, possíveis, determinados ou determináveis (artigo 104, inciso II do Código Civil) e se as demais normas de Direito Privado estão sendo observadas, sob pena de nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (artigo 166 do Código Civil).

 

Considerando que as negociações de contratos agrícolas podem ocorrer em situações de rápida e intensa oscilação de preços (algo que para muitas commodities é a regra e não a exceção), não é raro que os aplicativos de troca de mensagens instantâneas – como o WhatsApp – sejam ferramentas muito utilizadas para a realização de tais negociações, dada a praticidade e agilidade conferidas por eles. Do ponto de vista jurídico, tais comunicações podem ser enquadradas como simples tratativas negociais para a conclusão de contratos ou, ainda, como propostas, conforme previsto nos artigos 427 e seguintes do Código Civil, na seção denominada “Da formação dos contratos”.  

 

Uma vez que uma comunicação enviada por WhatsApp é enquadrada como uma proposta, a primeira consequência é que a proposta obriga o proponente, se o contrário não resultar dos termos dela, da natureza do negócio ou das circunstâncias do caso (artigo 427 do Código Civil). Além disso, existem diversas outras disposições legais que dizem respeito ao prazo de resposta, à perda da validade da proposta, ao momento em que a ela deixa de ser obrigatória, à forma como o aceite da proposta deve ocorrer e etc.

 

Em razão de tais consequências jurídicas, as pessoas envolvidas em negociações através de aplicativos e plataformas virtuais deverão ter cuidados redobrados, sob pena de implicações não desejadas às suas eventuais, e pretensas, “simples conversas”. Adicionado a isto, as negociações em meios eletrônicos geram provas mais eficazes, na medida em deixam mais rastros, indícios e o registro das manifestações de vontade. Se, por um lado, os aplicativos de comunicação instantânea significam praticidade e facilidade que os colocam como uma opção melhor do que o telefone, por outro lado, os registros deixados por tais conversas são meios de prova cada vez mais utilizados nos tribunais.

 

Ainda escorados na doutrina do Prof. Rodrigo Fernandes Rebouças (in Contratos Eletrônicos – Formação e Validade: Aplicações Práticas, 2ª Edição, Almedina, 2018), são conhecidas três formas de contratação por meio eletrônico: (i) contratações interpessoais; (ii) contratações interativas; e (iii) contratações intersistêmicas. Nas contratações interpessoais a proposta, o aceite (ou contraproposta) e a aceitação dos termos contratuais são caracterizados pela ação humana direta, por ambas as partes, ainda que por meio de e-mails, chats ou aplicativos que permitam a troca de mensagens. Nas contratações interativas, temos a ação humana de um lado e um sistema de computador do outro lado. Existe a interação entre uma pessoa natural e um sistema automatizado de comércio eletrônico. É o tipo de contratação comum em lojas virtuais. Por outro lado, nas contratações intersistêmicas tanto o ato da compra como o da venda (por exemplo) são realizados por sistemas programados previamente para realização das transações. A ação humana direta ocorre apenas quando os representantes legais de cada uma das partes realizam as programações de dados que definirão o momento e a forma em que, por exemplo, o sistema do vendedor vai realizar o pedido automático para o almoxarifado liberar o produto para o comprador, cujo sistema enviou uma ordem (também automática) para a sua equipe de logística retirar o produto. Por fim, os Smart Contracts são uma forma de contratação eletrônica mista entre os contratos intersistêmicos e os contratos interpessoais, nos quais ocorrerá a prévia programação dos direitos e obrigações contratuais (fase interpessoal) que serão verificados. Em ato posterior ocorrerá a automática execução eletrônica de outras obrigações contratuais, como pagamento do preço e a remessa dos produtos (fase intersistêmica).

 

A expectativa é que as negociações por meio de plataformas virtuais, as assinaturas de contratos com assinaturas digitais e a utilização dos diversos tipos de contratos eletrônicos se torne uma realidade cada vez mais comum no agronegócio, o que exigirá uma nova postura dos atores envolvidos e dos advogados que atuam na área.

 

Um ótimo mês a todos.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IPOJUR

 

Advogado formado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”), cursou MBA em Gestão Estratégica do Agronegócio na FGV, em São Paulo. Atua há quase 20 anos com os diversos ramos do Direito do Agronegócio. Membro do Comitê de Direito do Agronegócio do IPOJUR, atualmente é gerente jurídico de uma empresa multinacional do setor. Autor de artigos jurídicos.