Guerra Fiscal – Uma análise sobre o fenômeno no Brasil

A história da humanidade é repleta de desentendimentos causados por divergências políticas, disputas territoriais ou embates de natureza ideológica.

Uma análise detida revela, de modo geral, que tais confrontos têm seu nascedouro nos conflitos de interesses das partes envolvidas nas contendas, que de um lado agem para impor suas pretensões em desfavor dos contrários, e estes, por sua vez, oferecem resistência e contragolpeiam num crescendo até que a vontade de uma ou outra parte se sobreponha à outras, ou ambas as partes cheguem ao consenso.

No linguajar coloquial, as divergências mais acirradas passaram a ser chamadas de “guerra”. É muito comum vermos os apresentadores de jornais televisivos, youtubers, e da mídia de massa, falar em “guerra política”, “guerra digital”, “guerra do petróleo”, “guerra psicológica” et cetera.

No curso do presente estudo, no entanto, o uso do vocábulo “guerra” não será utilizado no sentido que lhe foi emprestado por Carl Von Clausewitz[1], no clássico Vom Krieg[2], onde o militar prussiano define o termo como sendo um “ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”[3] (2003, p.7).

Utilizaremos o termo “guerra” na acepção mais próxima à sua origem etimológica que aponta sua origem no idioma germânico, derivada da palavra “werra (de onde virá igualmente o war inglês), cujo significado inicial não era o de conflito sangrento, mas algo mais na linha da discordância, que podia nascer de uma simples discussão verbal e chegar, no máximo, a um duelo”[4].

No contexto desta pesquisa, a expressão ganha contornos de “discordância” quanto à manutenção do equilíbrio interpares, e acaba por se transformar em verdadeira disputa político – econômica, entre os entes federativos.

A palavra fisco, cuja origem remonta ao Império Romano, e que consistia na parte dos recursos financeiros do Estado, destinados à manutenção do príncipe e que mais tarde passou a representar o conjunto de órgãos públicos responsável pela determinação e arrecadação de impostos, taxas e outros valores, atualmente é sinônimo de erário, receita, fazenda, será utilizada com entendida em sua acepção mais universal[5].

Podemos extrair da expressão “guerra fiscal” a disputa praticada pelos entes federativos, por meio de ações concorrenciais extremas e não cooperativas no que diz respeito à gestão de suas políticas públicas, de modo a favorecer empresas interessadas em investir ou transferir investimentos para suas bases territoriais, concedendo benefícios fiscais, financeiros e de infra-estrutura.

Os incentivos fiscais, principal componente das “guerras fiscais”, embora cumpram um papel preponderante nessa espécie de concorrências atuais, ao contrário do que se possa imaginar, são instrumentos estimuladores praticados há muito tempo entre nós brasileiros.

Segundo Vinicius Figueiredo Chaves[6]

Eles são concedidos pelos entes tributantes desde a década de 60. Todavia, somente no início da década de 90, eles se generalizaram, em parte pela nova sistemática tributária nacional, introduzida pela Constituição de 1988 (2009, p.203).[7]

Talvez o mais expressivo projeto relacionado à concessão de incentivos fiscais tenha sido a criação da zona franca de Manaus / AM, que se deu por meio da promulgação da Lei nº 3.173, de 06 de junho de 1967, mais tarde revogada pelo Decreto Lei nº 288, de 28 de fevereiro de 1967.

O objetivo da criação dessa zona especial tinha por escopo, o desenvolvimento regional do Amazonas, criando uma base econômica, com integração produtiva e social, por meio de oferecimento de vários incentivos, principalmente o incentivo fiscal.

A intenção por detrás do projeto de criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), encontra-se aclarado no art.1º, da mencionada lei, cuja redação prevê que

A Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância, a que se encontram, os centros consumidores de seus produtos[8].

O objetivo da concessão de incentivos fiscais tem ou deveria ter por propósito, a obtenção de contrapartida contributiva para o desenvolvimento estrutural, econômico e/ou social de determinada região, entretanto, como será visto mais adiante, muitas vezes, tais pretensões não são satisfeitas, gerando prejuízos para o concedente, que sequer alcança meros dividendos políticos de seu projeto.

O fenômeno, se observado a partir de uma perspectiva divergente, mais ampla, pode induzir à conclusão de que a disputa pela alocação de empresas em determinadas bases territoriais, ao contrário de lucro, acaba gerando prejuízo efetivo ao erário do ente federativo tributante.

A concorrência acaba por favorecer os detentores do capital privado, sobretudo, os grandes conglomerados, que no mais das vezes, em razão de seu potencial financeiro, acabam conseguindo enormes benefícios, que vão muito além do simples incentivo fiscal.

Nesse sentido, a disputa acaba resultando num processo deletério, em que nenhum dos entes federativos envolvidos na contenda obtém para si um resultado satisfatório e, como assinalado anteriormente, que a disputa acaba resultando em prejuízo para o país.

Os incentivos fiscais que acabam resultando em “guerra” podem ocorrer nos três níveis: federal, estadual e municipal. No primeiro caso, a questão é travada no âmbito das relações internacionais; a segunda, talvez a mais recorrente, ou a mais prejudicial, está relacionada diretamente à questão do ICMS; e por fim, a terceira, experimentada no nível municipal, diz respeito ao ISS. Considerando os limites deste trabalho, o foco será a “guerra fiscal” entre Estados, por meio do Imposto de Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS).

  1.   O Sistema Tributário Nacional e o ICMS

A guerra fiscal consiste em um fenômeno que tem se intensificado a partir dos anos 90, apresentando como característica marcante, a disputa entre os Estados pela atração de empresas para seus territórios.

Como explica Sonia Aparecida Cardozo, “a possibilidade das unidades da federação entrarem nessa disputa estão diretamente relacionadas às regras do sistema tributário brasileiro, basicamente no que diz respeito ao ICMS” (2010, p. 20)[9].

O Sistema Tributário Nacional foi instituído pela Lei nº 5172, de 25 de outubro de 1966[10], e na Seção II, do Título IV, artigo 52 usque ad 58, estabelecia a competência estadual para tributação sobre circulação de mercadorias, base de cálculo, fato gerador, não-cumulatividade e outros elementos indispensáveis à sua aplicabilidade.

O texto foi revogado por ocasião da edição do Decreto – Lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968[11], que estabeleceu “normas gerais de direito financeiro, aplicáveis aos impostos sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre serviços de qualquer natureza, e dá outras providências”.

Objetivando a organização da tributação e do orçamento, a Assembleia Nacional Constituinte debateu amplamente o assunto e ainda que se possa tecer críticas ao texto, o debate resultou na inserção do Título IV – sobre a rubrica “Da Tributação e do Orçamento”, no texto da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, promulgado no dia 05 de outubro de 1988.

Originariamente, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e sobre prestação de Serviços (ICMS), encontrava-se previsto no art. 155, I, b, e posteriormente, em face da promulgação da Emenda Constitucional nº 3, de 17de março de 1993, passou a ser disciplinado no art. 155, inciso II, com redação idêntica à anterior, que estabeleceu como sendo de competência exclusiva dos Estados e do Distrito Federal, a criação de imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”[12].

Trata-se de espécie tributária bastante antiga e conhecida entre os brasileiros. Conforme ensina J. J.  Gomes Canotilho, et al,

Na origem, pela Constituição de 1891, os estados, afora a competência para a instituição do Imposto do Selo, este dispunham de uma competência para os estados tributarem ‘indústrias e profissões’ (art.9º § 4º). Estas duas modalidades de tributos foram a base de incidência de uma tributação sobre atos e negócios jurídicos e sobre a produção e prestação de serviços, de caráter monofásico e, portanto, cumulativo. Com a Constituição de 1934 foi atribuído aos Estados o ‘Imposto de Vendas Mercantis’, que logo em seguida viu-se substituído pelo ‘Imposto de Vendas e Consignações-IVC’, posteriormente mantido pelas Constituições de 1937 e de 1946. Este era um imposto plurifásico e cumulativo, o qual incidia sobre cada venda realizada com a mesma alíquota, sem possibilidade de deduções dos valores pagos nas operações anteriores. Em 1965, acompanhando os reflexos das reformas ocorridas nos sistemas dos diversos países europeus, a Emenda Constitucional n.18/65 extinguiu o referido imposto, substituindo-o pelo ‘Imposto de Circulação de Mercadorias – ICM’, com a característica de ser plurifásico e não cumulativo […] Ainda nos dias de hoje, é importante refletir sobre o conteúdo da exposição de motivos da proposta de reforma tributária, presente na EC n.18/65, amparada numa pretensão de atualização dos novos modelos de tributação, baseados no valor acrescido, em prejuízo dos regimes de tributação monofásica  ou cumulativa, para alcançar um modelo que permitisse evitar integração vertical de empresas e garantisse uniformidade de carga tributária, independentemente da extensão do circuito econômico, e que eliminasse os efeitos econômicos danosos da cumulatividade nas cadeias plurifásicas. O regime previsto na Constituição de 1988, em certa medida, corresponde à fase mais adiantada de todas essas tentativas de acomodação entre incidência tributária e suas repercussões econômicas (2018, p.1822)[13].

José Afonso da Silva discorrendo sobre o ICMS, ensina que se trata de imposto “complexo, cercado de voltas e contravoltas, de incidências e não incidências, de controles e mais regras de prevenção de conflitos entre Estados e de duplas incidências” (2006, p.726)[14] .

Essa complexidade acabou ao longo dos anos tornando o ICMS, um instrumento indutor da competição entre os Estados da Federação, num jogo de interesses que não é de soma zero, assim considerado aquele certame que quando uma das partes envolvidas ganha a outra perde o equivalente, e portanto, ao final, o resultado é zero.

No caso do ICMS, via de regra, os Estados com menor capacidade financeira e desenvolvimento, e mais amplamente, a Federação, acabam sendo prejudicados pela política fiscal unilateral dos Estados mais ricos, que possuem maiores possibilidades de captação de investimentos e cooptação de empresas para instalação de plantas em suas bases territoriais.

A concessão de benefícios e isenções de natureza fiscal relativas ao ICMS, acabam instrumentalizando as “guerras fiscais”, em razão das concessões unilaterais feitas por alguns dos Estados da Federação.

Nas palavras de Vinicius Figueiredo Chaves,

Essas manobras objetivam tornar atrativo o território destes Estados, através da redução do ônus tributário, via concessões de vantagens para sociedades que estejam nele instaladas, estabelecidas em outros, ou mesmo para novas sociedades, que buscam um lugar para se estabelecer (2009, p.205)[15].

Mas seriam essas reduções do ônus tributário vantajosas para os Estados Federados, isoladamente considerados, ou para a Federação, como um todo? Quais as justificativas? Quem, de fato, beneficia-se com a “guerra fiscal”? Existem mecanismos que buscam coibir a disputa entre os Estados? Quais seriam?

Estas indagações são pertinentes à discussão e para que possam ser respondidas, importante que sejam dadas algumas explicações preliminares, a respeito do ICMS e de seus mecanismos, em particular aqueles relacionados às operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado.

O Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), está previsto na Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 155, inciso II, como sendo de competência estadual a sua instituição, e se destina a tributar as “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior” (BRASIL, 1988)[16].

A hipótese de incidência tributária recai sobre a circulação de mercadorias e prestações de serviços, ainda que essas operações tenham se iniciado no exterior.

José Afonso da Silva ensina que

O fato tributável é a operação sobre circulação de mercadorias; o momento do fato gerador pode ser: a saída de mercadoria do estabelecimento do contribuinte, o fornecimento de alimentação e bebidas em bares e restaurantes ou similares, o desembaraço aduaneiro de mercadoria importada do exterior, ou o início de transportes terrestres, aéreos, aquáticos ou por outras vias, ou o ato final do transporte iniciado no exterior, ou a prestação onerosa de serviços de comunicação e outros, nos termos de lei complementar (LC 87/1996)[17].

A lei complementar nº 87, de 13 de setembro de 1996, conhecida como lei Kandir, referência feita a seu idealizador – Antonio Kandir, então Ministro do Planejamento do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, dispõe “sobre o imposto dos Estados e do Distrito Federal sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, e dá outras providências”[18].

Este diploma legislativo traz insculpidas em seu art. 2.º, as hipóteses de incidência tributária:

Art. 2° O imposto incide sobre:

I – operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares;

II – prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal, por qualquer via, de pessoas, bens, mercadorias ou valores;

III – prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza;

IV – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços não compreendidos na competência tributária dos Municípios;

V – fornecimento de mercadorias com prestação de serviços sujeitos ao imposto sobre serviços, de competência dos Municípios, quando a lei complementar aplicável expressamente o sujeitar à incidência do imposto estadual.

  • 1º O imposto incide também:

I – sobre a entrada de mercadoria ou bem importados do exterior, por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade

II – sobre o serviço prestado no exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior;

III – sobre a entrada, no território do Estado destinatário, de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e de energia elétrica, quando não destinados à comercialização ou à industrialização, decorrentes de operações interestaduais, cabendo o imposto ao Estado onde estiver localizado o adquirente.

  • 2º A caracterização do fato gerador independe da natureza jurídica da operação que o constitua[19].

Para fins de aplicação do tributo, a Lei Complementar nº 87/96, define como sendo contribuinte, qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com habitualidade ou em volume que caracterize intuito comercial, operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior (art.4º)[20].

O ponto crucial da discussão acerca do ICMS, enquanto instrumento no contexto da “guerra fiscal”, diz respeito à defesa dos interesses dos entes federativos, de acordo com o ponto de vista político localizado, atrelado a interesses políticos individuais, sem, contudo, tomar-se por base o interesse global.

Os governadores, enquanto homens públicos, deveriam ter em mente a busca do melhor resultado para o todo, ou seja, o objetivo deveria ser norteado por ações destinadas a proporcionar o melhor resultado para a federação.

Se todos pensassem desta maneira, a União alcançaria índices cada vez mais positivos e a médio e longo prazo, os resultados obtidos pelo esforço conjunto, poderiam ser partilhados, trazendo benefícios para todos.

Entretanto, o grande obstáculo a ser superado na busca de um pensamento “comunitário”, reside justamente na questão dos interesses políticos regionalizados.

É bem verdade, que os governadores foram eleitos para atender os interesses das populações de seus Estados, e, portanto, devem prevalecer as ações políticas voltadas à defesa daquilo que for mais benéfico ao seu eleitorado, tendo como bandeira a autonomia dos entes federados.

Por outro lado, não se pode deixar de reconhecer que os governadores, enquanto indivíduos políticos, possuem, cada qual, projetos de manutenção do poder, próprio ou das agremiações partidárias às quais pertencem, e, assim sendo, na maioria das vezes, suas ações são norteadas por interesses imediatamente relacionados à obtenção de dividendos políticos em suas bases eleitorais.

Aliás, o imediatismo político tem sido um elemento bastante prejudicial no cenário político nacional de um modo geral. Os políticos brasileiros têm adotado ao longo dos anos, uma postura nociva aos interesses do país, na medida em que seus projetos preponderantemente são dirigidos por ações eleitoreiras, que consideram apenas e tão somente a manutenção do poder, consubstanciado na reeleição.

Esta visão torpe acerca da missão política, consiste em entrave intransponível para o desenvolvimento de ações de médio e longo prazo destinadas à edificação de projetos benéficos ao país, como por exemplo, os projetos plurianuais, cujos dividendos serão percebidos ao longo de cinco, dez, vinte anos ou mais.

Os projetos prevalentes são sempre aqueles cuja consecução possa ser terminada no período equivalente ao mandato do gestor, principalmente, se a conclusão ocorra em ano eleitoral e que seja possível a exploração política da obra ou serviço.

Nesse contexto, os governadores ao longo dos anos têm concedido incentivos fiscais, ainda que tenham a consciência de que no médio a longo prazo, tais incentivos resultem em prejuízos para a própria unidade federativa que dirige.

O raciocínio consiste na obtenção de dividendos políticos imediatos, e portanto, a concessão de incentivos à empresas que irão gerar empregos e movimentar a economia local, acaba sendo um meio de capitalização de ganhos para fins eleitorais.

Isso acaba funcionando durante um determinado período e pode até mesmo beneficiar a unidade federativa concedente, principalmente, se os incentivos são dirigidos às empresas que pretendiam instalar suas bases em outras unidades e que determinaram suas escolhas a partir da concessão de incentivos fiscais.

  1.   O ICMS e o fator exportação

O sistema de arrecadação do ICMS tem como pressuposto a relação débito / crédito e quando se trata de empresas, cujas produções são destinadas à exportação, a questão aumenta sua complexidade e põe a nu, a desigualdade decorrente do sistema tributário nacional quanto aos prejuízos subjacentes à “guerra fiscal”.

Imagine-se a seguinte situação: uma empresa “X”, recebe incentivo fiscal para se instalar no Estado “S” e dá início a um processo produtivo destinado à exportação para o país “A”, por exemplo.

Imagine-se, ainda, que todos os insumos destinados à produção da empresa “X”, sejam adquiridos do Estado “M”.

Considerando-se, o disposto no art.3º, inciso II, da Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996, que prevê a não incidência do imposto sobre ‘operações e prestações que destinem ao exterior mercadorias, inclusive produtos primários e produtos industrializados semielaborados, ou serviços”[21], ao Estado de “S” não caberia a percepção de qualquer valor.

Por outro lado, de acordo com o previsto no art. 11, o local da operação ou da prestação, para os efeitos da cobrança do imposto e definição do estabelecimento responsável, em se tratando de mercadoria ou bem, é “o do estabelecimento onde se encontre, no momento da ocorrência do fato gerador” (Art.11, inc. I, “a”), que no exemplo em questão é o Estado “M”.

Devido ao fato de que as exportações devem estar livres de impostos, na hipótese vertente, as saídas das mercadorias da empresa “X” não geraram débitos de ICMS, todavia, as aquisições de insumos, em contrapartida, acabaram gerando créditos, os quais não possuem débitos correspondentes para eventual compensação, uma vez que os insumos destinados à produção foram adquiridos no Estado M, e o ICMS correspondente arrecadado nesta unidade federativa.

Surge, então, para o Estado S o ônus do ressarcimento à empresa “X”, para que haja isenção do valor global das exportações, pois, se as aquisições de insumos houvessem sido feitas de empresas estabelecidas neste estado, o ressarcimento seria equivalente ao valor anteriormente arrecadado das empresas fornecedoras dos insumos, entretanto, como esta operação se verificou no Estado “M”, sobrou para o Estado “S”, o ônus do ressarcimento sem o bônus da arrecadação.

O quadro fica mais caótico ainda quando, na hipótese da operação dada como exemplo, a exportação ocorrer por uma terceira unidade, Estado “C”.

Neste exemplo, o Estado “M” ficaria com a arrecadação dos valores referentes aos insumos; o Estado “S”, por sua vez coletaria eventualmente o valor adicionado pelo produtor, e, o Estado “C” arcaria com o ônus do ressarcimento relativo a todo imposto incidente na operação.

Neste quadro, a concessão do incentivo por parte do Estado “S”, ainda poderia ser interessante, pois, embora estivesse renunciando a parte de sua arrecadação, de certa maneira estaria obtendo alguma vantagem econômica de modo a aumentar sua receita.

  1.   Benefícios aos Estados mais ricos e às empresas e prejuízo à Federação como um todo

Retomando questão colocada anteriormente, mostra-se imprescindível buscar resposta à indagação a quem beneficiaria de fato a concessão de incentivos fiscais, como foi colocada no item 1.

Um observador atento, analisando a linha do tempo, sem maior esforço de raciocínio, acaba constatando que as renúncias fiscais ao longo dos anos, acabam crescendo e impondo aos Estados menos favorecidos do ponto de vista econômico, uma perda da capacidade de implementação de projetos destinados à infra-estrutura, indispensável ao escoamento da produção de bens e facilitação da prestação de serviços das empresas alocadas em sua base territorial.

Torna-se evidente que a concorrência será favorável aos Estados dotados de maior capacidade econômica, entretanto, do ponto de vista macrofiscal, a disputa acaba resultando em uma ação deletéria se observada a partir da perspectiva da Federação.

A disputa acaba transformando os incentivos fiscais em meras renúncias, sem contrapartidas efetivas, isso porque, a atividade empresarial dentro da sociedade capitalista, considera apenas e tão somente a obtenção de lucro e dividendos aos seus proprietários / acionistas.

Evidentemente, como atividade empreendedora, as empresas sempre estarão dispostas a buscar relações comerciais / tributárias que resultem em ganho, em aumento do lucro.

Como observa Figueiredo Chaves

Quando uma sociedade decide se estabelecer em determinado Estado, o faz por acreditar que ali poderá ter êxito na atividade, seja qual for seu ramo de negócio. Na sua esteira, traz consigo investimentos e empregos. Ao iniciar suas atividades, praticará fatos geradores de obrigações tributárias, que resultarão no pagamento de tributos, aumentando-se a arrecadação deste Estado. No entanto, o raciocínio inverso indica que, se outro Estado libera um incentivo fiscal economicamente mais atraente, esta mesma pessoa jurídica simplesmente fechará as portas e encerrará as atividades onde estava estabelecida, transferindo-as para o território deste outro Estado (2009, p.207)[22].

Torna-se evidente que um dos fatores de escolha de alocação passa a ser a concessão de benefício (ou “renúncia”) fiscal, ao lado da existência de melhor panorama de infraestrutura e maior qualidade dos serviços públicos prestados, que em regra favorece os Estados dotados de maior capacidade econômica.

A concessão de incentivos por estes Estados, acaba obrigando outros Estados e atuarem da mesma maneira, numa relação prejudicial à arrecadação tributária global.

 

A respeito do fenômeno

Por razões óbvias, se pode afirmar que esta dinâmica não produz crescimento, simplesmente por não resultar em ganho definitivo e fixação de investimentos, empregos e arrecadação, mas mera transferências dos mesmos. Transferência esta, que se opera de um território para o outro, sucessivamente (CHAVES, 2009, p.207)[23].

Evidencia-se que essa política se mostra equivocada na medida em que permite aos detentores dos meios de produção, e, principalmente, os donos do capital, cuja capacidade de mobilidade é grande, transferirem suas atividades para as unidades federativas que lhes concedam o maior número de benefícios possível.

Lei Complementar 24, de 7 de janeiro de 1975, o CONFAZ e sua ineficácia  

Estranhamente, os conflitos que envolvem as concessões de incentivos fiscais acontecem ao arrepio da Lei Complementar nº 24/75, recepcionada pela Constituição Federal, que prevê em seu art. 1º, que as isenções do imposto “sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta lei”[24].

É bem verdade que por ocasião de sua promulgação, este diploma tratava apenas do ICM, mas sua aplicação não perdeu vigência, embora, tenha se mostrado ao longo dos anos, ineficaz, mesmo durante o período mais autoritário de nossa história recente, o que demostra o poder do capital se sobrepondo à lei e aos interesses do Estado.

De plano, no exórdio, o texto traz insculpida a necessidade imperativa de prévia realização de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, para que se possa conceder incentivos fiscais.

Talvez a mais importante contribuição deste diploma legal tenha sido a criação do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, como órgão encarregado de promover a harmonização de procedimentos e normas relacionadas às competências tributárias estaduais.

O art. 2º da mencionada lei estabelece que os convênios referidos no art. 1º, “serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo Federal” (BRASIL, 1975)[25].

E de acordo com o art.11, do mesmo diploma “o Regimento das reuniões de representantes das Unidades da Federação será aprovado em convênio”, fato que acabou se consolidando somente no ano de 1997, por meio do convênio ICMS nº 133/97.

No art.1º, o Regimento estabelece que

O Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ tem por finalidade promover ações necessárias à elaboração de políticas e harmonização de procedimentos e normas inerentes ao exercício da competência tributária dos Estados e do Distrito Federal, bem como colaborar com o Conselho Monetário Nacional – CMN na fixação da política de Dívida Pública Interna e Externa dos Estados e do Distrito Federal e na orientação às instituições financeiras públicas estaduais (BRASIL, 1997)[26].

É possível inferir que a criação do CONFAZ teve por escopo a viabilização de ações destinadas não só à padronização de procedimentos formais, mas, sobretudo, a equalização de divergências eventualmente existentes entre os entes federativos.

Dentre as dissensões mais expressivas, encontra-se a concessão de benefícios por parte dos Estados, relacionados ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS.

A atuação desse conselho deveria ser suficiente para impedir a ocorrência da “guerra fiscal”, sobretudo em razão da existência de previsão expressa “estabelecendo que a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes” (LC 24/75, art. 2º, § 2º)[27].

Se o artigo fosse minimamente observado, a “guerra fiscal”, praticamente inexistiria, entretanto, por força dos interesses econômicos dos Estados dotados de maior capacidade econômica, pode-se dizer que o diploma segue sendo verdadeira “letra morta”.

Reforma Tributária – PECs 45/2019 e 110/2019

Atualmente tramitam no Congresso Nacional duas Propostas de Emenda à Constituição, sendo a de nº 45/2019, elaborada pela Câmara dos Deputados, e a de nº 110/2019, redigida pelo Senado Federal, ambas, destinadas à reforma do Sistema Tributário Nacional.

De acordo com Celso de Barros Correia Neto, et al,

Em ambas as proposições, a alteração do Sistema Tributário Nacional tem como principal objetivo a simplificação e a racionalização da tributação sobre a produção e a comercialização de bens e a prestação de serviços, base tributável atualmente compartilhada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (2019, p.2)[28].

A complexidade que envolve o Sistema Tributário Nacional tem sido um fator prejudicial à arrecadação e gerador de vários conflitos que vão desde a “guerra fiscal” entre os entes federativos, em decorrência da concessão de benefícios, até a gigantesca quantidade de ações levadas a efeito perante o Poder Judiciário, calcadas na enorme quantidade de brechas existentes na legislação vigente.

Há muito tempo o país reclama um Sistema Tributário mais simplificado, estruturado num conjunto de normas legais mais claras, que certamente irão contribuir para uma melhor arrecadação, beneficiando a relação contribuinte / erário.

Na reforma pretendida pelas duas PECs (45/2019 e 110/2019), alguns pontos relacionados à questão aqui debatida merecem reflexão, entre eles, a supressão de vários tributos, que serão substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços – IBS.

Embora as propostas tenha origens diversas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), ambas propugnam a extinção de uma série de tributos, concentrando as bases tributáveis em dois novos impostos, a saber:

(i) um imposto sobre bens e serviços (IBS), nos moldes dos impostos sobre valor agregado cobrados na maioria dos países desenvolvidos; e

(ii) um imposto específico sobre alguns bens e serviços (Imposto Seletivo), assemelhado aos excise taxes.

No tocante à fixação de competência tributária, a proposta emanada do Senado Federal (PEC 110/2019), apresenta a proposta de que o IBS seria de competência estadual, a ser instituído pelo Congresso Nacional, com poder de iniciativa reservado, enquanto a proposta oriunda da Câmara dos Deputados (PEC 45/2019) traz a previsão de competência federal, instituído por lei complementar federal, exceto, no tocante à fixação das parcelas das alíquotas, a ser definida por lei ordinária de cada ente federativo.

Outro ponto importante das PECs em comento, está relacionada à determinação da alíquota do Imposto sobre Bens e Serviços – IBS.

De acordo com a PEC 110/2019, a fixação da alíquota do IBS se daria por força de lei complementar, que estabeleceria uma “alíquota padrão”, prevendo a existência de alíquotas diferenciadas em relação à padrão para determinados bens ou serviços, sendo variável de acordo com o bem ou serviço, entretanto, cada padrão seria aplicado de maneira uniforme em todo o território nacional.

Por outro lado, a PEC 45/2019, propõe que cada ente federativo estabeleça uma parcela da alíquota total do imposto por meio de lei ordinária (federal, estadual, distrital ou municipal), e a partir da formação do conjunto de “sub-alíquotas”, formar-se-á a alíquota única aplicável a todos os entes; cria-se a figura da “alíquota de referência”, que substituiria a arrecadação dos tributos federais, de modo que todos os bens e serviços “destinados a determinado Município / Estado são taxados por uma mesma alíquota, mas a tributação não é uniforme em todo o território nacional” (CORREIA NETO, et al, 2019, p.4)[29].

Analisando o conteúdo das duas propostas mencionados acima, sem maior aprofundamento, permite-se entrever a necessidade da prevalência da PEC 110/2019, sobre a PEC 45/2019, em matéria de “guerra fiscal”, por possuir aquela mecanismos mais eficazes no enfrentamento da questão.

O estabelecimento de uma alíquota padrão, para aplicação uniforme em todo o território nacional, mostra-se adequada ao propósito de não se permitir o manuseio para a concessão de benefícios fiscais, de modo a favorecer os Estados dotados de maior capacidade econômica.

Por outro lado, se houver sobreposição da PEC 45/2019, com a possibilidade de fixação de alíquota por parte dos entes federativos, a tributação continuará sendo disforme em sua aplicação no território nacional e continuará ensejando o conflito tributário conhecido por “guerra fiscal”.

CONCLUSÃO

A denominada “guerra fiscal”, entendida como a disputa entre entes federados pela alocação de empresas em suas bases territoriais, por meio da adoção de políticas de incentivo fiscal, tem se mostrado um fator prejudicial aos interesses nacionais, na medida em que permite que os Estados dotados de maior capacidade econômica, sobreponham seus interesses em detrimento de outros Estados menos favorecidos, nos quais tais renúncias fiscais não se fazem possíveis e cujas infraestruturas não se apresentam nas mesmas condições daqueles.

E embora possa parecer vantajoso durante certo tempo, e no mais das vezes é, no transcorrer de períodos mais extensos, uma análise detida dos resultados permite constatar que a Federação, como um todo, acaba sendo a maior prejudicada.

A concessão de benefícios tem como pressuposto lógico o desenvolvimento de determinada região, entretanto, tem sido pautada pelos interesses políticos regionalizados, de modo a favorecer, principalmente, os interesses políticos individuais.

No mais das vezes, o chefe do Poder Executivo concedente tem por objetivo angariar dividendos políticos ao conceder determinados incentivos, tendo como meta a consecução de projeto político próprio ou do grupo ao qual pertence, mesmo que isso ao longo dos anos se mostre prejudicial ao ente federativo que dirige.

É inegável que a instalação de determinada empresa na base territorial possa trazer inúmeros benefícios à unidade federativa concedente, devido à criação de postos de trabalho e eventual geração de arrecadação a partir de tributos incidentes na aquisição de insumos destinados à produção, mas, também pode se mostrar bastante prejudicial se, como no exemplo discutido, a produção se destinar à exportação e os insumos forem adquiridos em outra unidade federativa, gerando o ônus compensatório ao concedente.

Também pode ser deletéria a concessão, se observada a partir da perspectiva regional, e principalmente do ponto de vista nacional.

A chamada “guerra fiscal” acaba por favorecer apenas e tão somente ao detentores do capital, cuja mobilidade proporciona o norteamento de suas decisões a partir do lucro, sem qualquer outra consideração.

A empresas, cuja meta é a produção de lucro ou dividendos para seus sócios / acionistas, acabam encontrando na “guerra fiscal”, um poderoso instrumento de pressão sobre os governos.

Isso porque, embora exista instrumentos legais destinados à impedir a ocorrência de conflitos fiscais entre os entes federativos, como a Lei Complementar 24/75, o fato é que o poder econômico preponderante de alguns entes federativos, acabam por fomentar o descumprimento da legislação vigente, sobretudo pela inexistência de um padrão de aplicação tributária uniforme em território nacional.

A criação do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) foi uma tentativa de criar um mecanismo destinado à harmonização dos procedimentos tributários e de pacificação do conflito de interesses entre os diversos entes federativos, medida que acabou não se mostrando eficaz como pretendida.

Uma importante medida de pacificação da questão seria a aprovação da reforma tributária, sobretudo, se alguns ponto contidos na PEC 110/2019, originada no Senado Federal, se transformassem em dispositivos legais. Dentre os pontos de interesse se encontra a criação de uma alíquota padrão de aplicação uniforme em todo o território nacional.

Ao final, conclui-se que a “guerra fiscal” prejudica a arrecadação tributária a partir da perspectiva da Federação; mostra-se imperativa a correção dessa distorção por meio da reforma tributária; e, a solução seria a simplificação do sistema tributário e a criação de alíquota padrão de aplicação uniforme e sanção para o descumprimento ou a criação de artifício para a concessão de benefício fiscal em detrimento de outro ente ou em proveito próprio do ente federativo concedente.

 

Artigo científico do advogado Nei Calderon, Presidente do IPOJUR, publicado no Portal Jurid. Leia diretamente no link, clicando aqui.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do IPOJUR

Mestre em Direito Político Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP; Especialista em Gestão de Serviços Jurídicos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP); Doutorando em Direito Empresarial e Cidadania do PPGD do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA/PR. Pesquisador científico integrante do Grupo de Pesquisa certificado no Diretório de Grupos de Pesquisa (DGP) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Conferencista, coordenador e dirigente de eventos científico-jurídicos nacionais e em âmbito internacional. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Ciências Políticas e Jurídicas (IPOJUR). Membro da Comissão Especial de Direito Bancário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP). Advogado Sênior do Escritório Rocha, Calderon e Advogados Associados. Consultor Jurídico nas áreas de Direitos Humanos, Direito Bancário, Direito Empresarial, com ampla expertise em recuperação de crédito e recuperação de empresas.